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Desintegração e restabelecimento da ordem predeterminada em Romeu e Julieta

Um estudo do caráter desafiador e restabelecedor à ordem predeterminada que representou o amor de Romeu e Julieta.

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Resumo 

O presente estudo surgiu da necessidade de discutir com mais profundidade o caráter desafiador ao mesmo tempo restabelecedor à ordem predeterminada que representou o amor de Romeu e Julieta. A maior tragédia amorosa de todos os tempos continua a nos desafiar saber por que foi tão impactante sobre os valores da época, significando um abalo à ordem pré-estabelecida e até então inabalável. Um amor que exigiu o absoluto do outro, renunciar-se a si mesmo e romper o invólucro do bem senso e dos valores fundamentais. A ousadia de Romeu e Julieta em romper com os códigos sancionados pela estrutura do patriarcalismo foi o que nos motivou a realizar a presente pesquisa, a qual é do tipo bibliográfica baseada em teóricos como Rosenfeld (1973); Heliodora (2001); Bloom (2000), entre outros.

Palavras-chave: Ordem; desintegração; restabelecimento; Romeu; Julieta.

Abstract: This study arose from the need to discuss in more depth the challenging character while reestablishing to predetermined order that represented the love of Romeo and Juliet. The most loving tragedy of all time continues to challenge us to know why it was so impactful on the values of the time, meaning a shock to pre-established order and even then unshakable. A love that demanded the absolute of the other, renounce to himself/herself and break the shell of good sense and fundamental values. The boldness of Romeo and Juliet in breaking the codes sanctioned by patriarchal structure was what motivated us to conduct this research, which is a bibliographical one based on theoretical as Rosenfeld (1973); Heliodora (2001); Bloom (2000), among others.

Keywords: Order; disintegration; restoration; Romeo; Juliet

1    INTRODUÇÃO

Em “Romeu e Julieta”, uma das visões contemporâneas exploradas por Shakespeare é a “Grande corrente dos seres”, um sistema que organizava o mundo e as pessoas hierarquicamente. “Também conhecida por “The Great Chains of Beings”. A grande cadeia dos seres foi um conceito recuperado por Aristóteles durante a idade média pela igreja católica”. “Em tal cadeia, Deus existia no topo, seguido dos anjos, dos homens, das mulheres, dos animais, das plantas e dos minerais”. (SMITH, 2009, p.) Conforme Tillyard (1942, APUD Smith, p.46) a grande corrente afirma o lugar fixo de tudo e todos e, assim, legitima uma ordem social que já dava sinais de enfraquecimento. Tal enfraquecimento pode ser notado em “Romeu e Julieta”. O amor dos dois de nomes homônimos à obra representa a desintegração da ordem social em Verona.

A partir destas constatações o presente artigo tem por objetivo analisar o caráter desafiador à ordem predeterminada, ao mesmo tempo restabelecedor desta mesma ordem que o amor de Romeu e Julieta representa. Assim, a motivação da presente pesquisa é buscar respostas ao longo do deste estudo acerca das inquietações que nos apregoam essa intensa tragédia amorosa que tem como protagonistas-vítimas Romeu e Julieta, o foco das próximas discussões.

2. A CONDIÇÃO HUMANA, A HIERARQUIA E A CADEIA DOS SERES

Bárbara Heliodora coloca que “Romeu e Julieta” é de tal modo envolvente e apaixonante pelo fato de a obra não ser (ou pelo menos não ser só) uma história de amor, mas sim um sermão sobre os males da guerra civil.

Romeu e Julieta compram com suas vidas a paz entre suas duas famílias, que viviam em luta gratuita e danosa para a comunidade, pois quem passa pelo doloroso aprendizado trágico são as famílias e não os jovens amantes, vítimas destruídas porque se amam em um mundo de ódio. (HELIODORA, 2001, p.42)

Os dois põem um ponto final à antiga rivalidade que se estabelecia entre as duas famílias e o caos que se abatia no microcosmo Verona, restando para os pais a solidão como castigo. No momento em que reconhecem o seu erro, a que os gregos chamam de anagnorisis ou reconhecimento. A rivalidade entre as famílias envolvia a todos numa sequência crescente na cadeia dos seres. Conforme cena I, ato I podemos ver Capuletos de um lado e Montecchios de outro, em constante guerra, do menor dos servidores, ao senhor.

Do you quarrel sir?

Quarrel sir, no sir; But if you do sir, I am for you, I serve as good a man as you;

No better. (ROMEU E JULIETA, I,I, p.33)

My sword I say old Montague and his blade in spite of me;

Thou villain Capulet, hold me not, let go (ROMEU E JULIETA, I, i

Segundo Frye (1999, p.30) “essa sequência indica uma disposição simétrica das personagens às duas casas inimigas”. Essa desarmonia tem um impacto no valor dado à hierarquia dos seres principalmente no que concerne ao lugar que Deus fixou para cada um na cadeia, que em sua essência é reconhecida como um símbolo de valorização da era medieval.  Conforme Smith (2009) a crença vigente era a de que Deus havia criado o universo como um sistema de hierarquias múltiplas e correspondentes entre si. Nesse sentido hierarquia é uma gradação dos seres, uma ordem que deve ser temida, como na era Elisabetana, em que os povos mantinham respeito à figura de Deus, a primeira grande ordem do universo, o princípio de tudo, melhor explicado nas palavras de Rosenfeld:

A plenitude da realidade não reside no múltiplo mundo sensível que nos cerca e sim no princípio, na causa e origem de todas as coisas, no ser uno e absoluto, em que a multiplicidade dos fenômenos particulares se encontra, na sua essência, ou nas essências prefiguradas. (ROSENFELD, 1973, p.124)

Até o próprio homem tem o seu lugar nessa classificação. Segundo a grande corrente dos seres, tudo o que fugisse às classificações desestabilizaria a ordem e traria o caos. (SMITH, 2009, p.). Uma dessas classificações afirma o lugar do pai no microcosmo família como o representante mais próximo de Deus. Romeu e Julieta rompem totalmente esse conceito desafiando a “ordem natural das coisas” no que diz respeito à esfera social, à esfera familiar e à esfera individual, o que os levou à clássica imperfeição trágica (hamartia). Segundo (Rosenfeld (1973), p. 132) “as desgraças que se abatem sobre os heróis trágicos de Shakespeare são condições inescapáveis do único mundo em que sem dúvida, vivem e sofrem”. Em Shakespeare: The invention of the human (2000), Harold Bloom faz uma colocação pertinente sobre a primeira tragédia autêntica de Shakespeare.

Shakespeare’s first authentic tragedy has sometimes been critically undervalued, perhaps because of its popularity. Though Romeo and Juliet is a triumph of dramatic lyricism its tragic ending usurps most aspects of the play and abandons us to unhappy estimates of whether, and what degree its young lovers are responsible for their own catastrophe. (BLOOM, 2000, p.87)

A proposta de Bloom nessa citação é desafiadora, pois nos leva mais perto de concluir até que ponto Romeu e Julieta são responsáveis por suas próprias catástrofes a começar por entender como assinalou Rosenfeld, as condições do mundo em que vivem.

2. O MUNDO SUBLUNAR, ROMPIMENTO E RESTAURAÇÃO DA ORDEM PREDETERMINADA

A respeito da concepção de mundo, conforme Aristóteles o mundo seria dividido entre o mundo sublunar e o mundo supralunar. O primeiro é referente a tudo que está abaixo da lua, onde se encontram os seres tumultuosos, as imperfeições e a busca pela ordem. Tal consideração é enfatizada por Rosenfeld (1973, p.124): “A perfeição e a eternidade residem no mundo de corpos celestes, feitos do quinto elemento, do éter, ‘quinta essência”. Assim, acima da lua, tudo seria totalmente puro, e haveria ordem entre todos os seres. No mundo sublunar, porém, tudo está sujeito a mudanças, e há eternos conflitos entre o homem e os demais seres, bem como no interior do próprio homem, portanto todos os movimentos referentes aos seres do mundo sublunar são sempre finitos e inferiores aos seres do mundo supralunar. Então, abaixo da lua haveria constantes movimentos violentos e seres corruptíveis.

Em “Romeu e Julieta” percebemos claramente essa condição inferior do homem que não o permite ser totalmente perfeito, a ponto de desafiar uma ordem até então inabalável. Romeu e Julieta nos leva a concluir que o homem baixo esquecendo-se de seu lugar secundário pensa que pode mandar no homem alto. Os jovens amantes vivem um amor que exige o absoluto, a dissolução um do outro, a exclusão de valores fundamentais como o nome, e isso é feito mutuamente. Conforme cena I, ato II, a primeira a se manifestar contrária a esses valores é Julieta que propõe uma mútua renegação de identidades.

O Romeo, Romeo, wherefore art thou Romeo? Deny thy father and refuse thy name, or if thou wilt not, be but sworn my love and I’ll no longer be a Capulet. (ROMEU E JULIETA, II, ii)

O confronto à ordem ganha proporções maiores no decorrer da conhecida “cena do balcão” em que Julieta se destaca pelo declarado desrespeito à hierarquia dos seres induzindo Romeu a agir como tal.

[...] That which we call a rose, by any other name would smell as sweet, so Romeo would were he not, Romeo call’d, retain that title, Romeo doff thy name, and for thy name, which is no part of thee, take all self (ROMEU E JULIETA, II, ii)

O ponto alto dessa atuação de Julieta é evidenciado na cena V, ato III onde se mostra desafiante à determinação de Capuleto em casá-la com Páris.

I will not marry yet and when I do, I swear it shall be Romeo, whom you know I hate, Rather than Paris, these  are News indeed. (ROMEU E JULIETA, III, V., p.103-104)

Observa-se então que a ousadia de Julieta é reconhecida universalmente pelos críticos: ela questiona a autoridade paterna e se recusa a seguir os códigos sancionados pela estrutura do patriarcalismo, priorizando sua identidade pessoal em detrimento da social. Ainda sobre a ordem, em “Romeu e Julieta” desintegrada, Guy Boquet (1989, p.19) realça com suas palavras tal conceito: “ Deus colocou a frente do Estado um magistrado para representa-lo na terra e se fazer obedecer por todos para o bem comum”. Contrariamente a isso, para Romeu e Julieta, o que os bastavam era um ao outro, ao passo que o casamento com Páris, a figura de Teobaldo e até mesmo os pais são apenas obstáculos a serem vencidos. Por isso “Romeu irrevogavelmente se torna uma figura trágica”. (FRYE, 1999, p.39) Frye confirma então que Romeu como herói-amante pertence à religião do amor e esta tem diferentes padrões do bem e do mal. Por tal razão os jovens são conduzidos por uma confiança arrogante em si mesmos, a que os gregos chamam de hubris ou hybris. A respeito disso Danziger afirma:

Essa espécie de presunção ou vaidade espiritual- o oposto da consciência de que ocupamos um lugar secundário no universo e devemos reconhecer a existência de certos poderes superiores, seja os do destino ou dos deuses- passou a ser considerada a clássica imperfeição trágica. (DANZIGER, 1974, p.134)

Danziger ainda atesta que certos elementos que não foram observados por Aristóteles são hoje vistos como parte integrante do modelo trágico. Segundo o autor, o mais digno de nota é o desfecho. Ao passo que Aristóteles menciona apenas o sofrimento, quer por danos físicos ou morte “os críticos modernos chamaram a atenção para o importante elemento da expiação ou purificação, o amadurecimento ou regeneração porque o herói deve passar em resultado de seus sofrimentos”. (DANZIGER, 1974, p.135). Mais perto desse desfecho, voltando ao discurso dos jovens apaixonados, Julieta fecha com chave de ouro a ação de sua hubris decidindo com Romeu a sua sorte.

[...] All my fortunes at thy foot I’ll lay, and follow thee my lord throughout the world. (ROMEU E JULIETA, II, ii, p.63)

Romeu e Julieta desafiaram essa ordem, por isso acabaram perdendo o equilíbrio moral e decretando suas mortes tragicamente. Conforme Danziger (1974, p.138) “os temas que parecem repetir-se na tragédia dizem respeito a terrível precariedade da existência humana, quer o herói se defronte com obstáculos esmagadores ou opções impossíveis”. Por isso Romeu tornou-se um herói trágico, um fraco desafiador da ordem juntamente com Julieta, mas segundo a visão trágica, “a tragédia dramatiza não só a lamentável e assustadora fraqueza do homem, mas também, de um modo ou de outro, a sua grandeza”. (DANZIGER, 1974, p.138) Danziger coloca ainda que, quando a relação entre a imperfeição e a queda é menos direta, onde o destino ou os deuses desempenham um papel mais importante, vemos numa forma igualmente terrível que o homem não é o responsável único por suas ações, mas deve, não obstante, assumir as consequências.

Considera-se ainda a intervenção das estrelas de duas formas no curso do amor de Romeu e Julieta. A primeira é que apesar de pertencerem a famílias inimigas os jovens acabam se encontrando, a segunda é que uma vez que se apaixonam e selam seu amor com o casamento eles decididamente acabam desafiando como já tanto enfatizado a “ordem natural das coisas”. Vemos, portanto que o universo de becos sem saída de Romeu e Julieta não tolera desafios ao destino. O destino, ou seja, a “má estrela” (Ii) põe fim ao amor dos dois e acaba ceifando suas vidas.

CONCLUSÂO

Enfim, há, portanto a clara sugestão de que as mortes de Romeu e Julieta tenham um caráter compensatório, isto é, elas poriam fim ao “ódio permanente” (Ii), sugerindo que haveria a volta ao equilíbrio e a  ordem na comunidade. “Romeo and Julie tis unmatched, in Shakespeare and in the world’s literature as a vision of an uncompromising mutual love, that perishes of its own idealism and intensity”. (BLOOM, 2000, p.89)

“Em última análise, tudo faz parte da história sagrada que se estende desde Adão até o juízo final. Neste plano, mesmo o mal tem seu lugar providencial, visto contribuir para a harmonia maior do todo” (ROSENFELD, 1973, p.125)

É possível concluir então, que a morte, a não concretização do amor de Romeu e Julieta foi providencial, uma vez que restabeleceu a ordem em Verona e pôs fim ao embate danoso entre as famílias, na proporção que desafiaram e desintegraram essa mesma ordem. O amor dos dois não era para se concretizar no mundo sublunar visto ser puro e perfeito e não se harmonizar em um mundo de imperfeições.

REFERÊNCIAS

ROSENFELD, Anatol. “Shakespeare e o pensamento renascentista”. São Paulo, Brasília: Perspectiva, INL, (Debates 7), 1973.

HELIODORA, Bárbara. “Falando de Shakespeare”. 2001

BLOOM, Harold. The Invention of the human. 2000

FRYE, Northrop. “Introdução” in: Shakespeare. (Northrop Frye on Shakespeare). São Paulo: EDUSP, 1999

BOQUET, Guy. A sociedade Elizabetana. 1989, Books, 1998.

DANZIGER, Marlies. A Natureza da Tragédia. SP: Cultrix; EDUSP, 1974.

TYLLIARD. E.M.W. The Elizabethan World Picture: A study of the idea of order in the age of Shakespeare. New York: vintage, 1942.

SMITH, Cristiane Busato. Shakespeare e a Astronomia: A visão de sua época. Eletras. Vol.18, 2009.


Publicado por: Francisco Mardônio de Sousa

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