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Encontros e desencontros da educação brasileira – relato de caso

Será que as cotas podem contribuir para diminuir a desigualdade na educação superior no país?

O texto publicado foi encaminhado por um usuário do site por meio do canal colaborativo Meu Artigo. Brasil Escola não se responsabiliza pelo conteúdo do artigo publicado, que é de total responsabilidade do autor . Para acessar os textos produzidos pelo site, acesse: https://www.brasilescola.com.

Como profissional da área de psicologia às vezes me surpreendo pesando sobre algumas questões da educação brasileira. Será que o sistema brasileiro de cotas/ações afirmativas pode contribuir de maneira eficaz para diminuir a desigualdade na educação superior de nosso país? Será ele capaz de fazer valer o artigo 6º da nossa Constituição? Garantir condições de permanência na escola, através do sistema de cotas, não nos ajudaria a estabelecer índices melhores de desempenho educacional e de desenvolvimento humano?

Ante o caso a ser relatado, parece que o estabelecimento e a efetivação de uma política séria de ação afirmativa contribuiria em muito para superarmos várias desigualdades entre brancos e negros. O caso a ser relatado é de uma pequena cidade no interior do Tocantins. Às vésperas da páscoa dirigi-me a uma escola estadual para ver uma apresentação de alguns alunos sobre o real significado da páscoa. Chegando lá, não pude deixar de perceber que as crianças que estavam realizando a apresentação eram todas bem claras/brancas e as que estavam ouvindo eram bem escuras negras/afrodescendentes. Era algo marcante, do tipo que não se consegue deixar de perceber. As crianças brancas, de uma outra escola, foram até esta escola pública para fazer a apresentação para as outras crianças negras.

No decorrer da bonita apresentação pude ouvir alguns comentários de alguns professores da escola pública, o que me motivou a escrever este relato. Comentários do tipo: “nossos alunos (os negros) nunca seriam capazes de fazer uma apresentação destas”. A outra professora responde: “também, nesta escola são apenas 8 alunos (brancos) por turma, aqui são quantos mesmo, 24, 27?”

Ao final da apresentação a professora da escola a qual os alunos estavam apresentando relata o porquê deles estarem ali: estavam praticando a cidadania, levando mensagens de paz, de amor e também um presente de páscoa aos mais necessitados. Através deste bonito gesto de “cidadania”, emendou que gostaria de ajudar os alunos que ali estudavam e que através de projetos realizados pelos mesmos, estariam seus alunos dispostos a ajudar. Fiquei curiosa para saber se aquelas crianças de 8, 10 anos de uma escola pública saberiam dizer o significado de projeto!

Neste momento ficou evidente algo para mim: o branco, detentor do poder, estava a frente da apresentação, através do discurso de oferecer auxílio, vai até a escola onde estudam os negros e pobres, para oferecer-lhes algo – no caso a apresentação e o presente de páscoa. Segundo Saffioti (2007), este é o palco atual de nossa sociedade ocidental, onde estão presentes sistemas de dominação-exploração, como a exploração das classes subalternas pelas dominantes, o patriarcado e o racismo. Esses sistemas de dominação formam um sistema único e assim, o poder se define como macho, branco, rico e adulto.

Esta análise social de Saffioti pode ser reforçada pela fala da própria professora dos alunos da escola pública: “meus alunos nunca seriam capazes de fazer uma apresentação bonita destas”.  Será que os alunos desta escola, digamos “mais humildes e empobrecidos” não poderiam mesmo realizar uma apresentação na outra escola? Será que os que ali estavam ouvindo não teriam muitas outras experiências a compartilhar e ensinar, talvez mais do que a aprender? Vivem diariamente com tantas incertezas, dificuldades, superações... E onde está a troca dialética fundamental para a construção do saber/fazer?

Vamos além com algumas reflexões. Na sociedade atual, onde a competição e a disputa são palavras chaves (intermediadas pelo belo discurso do trabalho em grupo), podemos observar inúmeras crianças com depressão, fobias, ansiedades, fatores estes que estão diretamente relacionados com a falta de diálogo, as brincadeiras solitárias com o vídeo game, a recompensa material que os pais lhe oferecem em troca do tempo despendido a ganhar mais dinheiro para poder colocar o filho em uma boa escola de inglês, judô, caratê, natação, para contratar uma boa baba, etc, etc, etc... resumindo, estes também podem escolher o quanto querem ser pais e mães, pois é fácil encontrar filhos que passam mais tempo fora de casa e com estranhos do que com os próprios pais.

Paulo Freire (2005), em sua crítica à escola tradicional, apresenta o conceito de educação bancária, a qual concebe o conhecimento como sendo constituído de informações e de fatos a serem simplesmente transferidos do professor – chefe – para o aluno – subordinado. Aqui, novamente encontramos a relação de dominação relatada por Saffioti. O conhecimento em questão se confunde com um ato de depósito, onde ganha quem consegue depositar mais informações em sua mente. Este papel é dificultado ante algumas realidades, sobretudo as com marcas gritantes de desigualdade social como é o caso da brasileira. Como encher o “tanque da mente”, se o tanque do estômago está vazio? E o tanque da auto estima então, onde foi parar???

Ainda segundo Freire, o ato de conhecer implica mais do que adquirir/receber informações, o ato de conhecer implica tornar presente o mundo da consciência, o qual necessita de intercomunicação, intersubjetividade. Na educação bancária, citada por Freire, o diálogo com o aluno torna-se desnecessário, uma vez que o educando é concebido em termos de falta, carência, ignorância.

Diante da educação formal que ainda perpetua em nosso sistema, apenas 3 questões são vistas como válidas: o currículo, que define o conhecimento valido, a pedagogia, que define o que conta como transmissão valida de conhecimento e a avaliação, que define a realização valida deste conhecimento. 

Já em um outro patamar, a educação problematizadora, por sua vez, concebe os sujeitos como ativamente envolvidos no ato de conhecer. Nesta nova(?) perspectiva, é a própria experiência dos educandos que se torna a fonte primaria de busca de “temas significativos” ou “temas geradores” que vão construir o conteúdo programático do currículo dos programas de educação. Esta forma de educar, infelizmente ainda esta longe da realidade apresentada por nossa educação.

No sistema educacional oferecido pelos estados, municípios, crianças com dificuldades diversas, convivem em uma mesma sala com outras 24, 27, com apenas um professor em sala de aula. Já a rede privada, a qual possui em sua maioria alunos com mais recursos, convivem apenas oito crianças ate dois professores.

Ante o exposto, indago: é justo culparmos nossas crianças por não aprenderem o currículo oficial? Ou ainda, será justo culpar apenas seus pais que não lhe oferecem orientações e auxilio? E o pior, nosso sistema educacional não oferece condições adequadas para a aprendizagem destas crianças, seus professores não acreditam em seu potencial e, afinal, o que o estado, a sociedade estão fazendo para superar essa situação? Onde estão as políticas públicas educacionais realmente preocupadas com a qualidade e o resultado prático do ensino brasileiro? Quando os professores ganharão dignamente? Quando a educação brasileira de fato será tratada como prioridade?

Neste cenário de repercussões e desdobramentos variados, torna-se importante um trabalho interdisciplinar na educação, envolvendo pedagogos, professores, psicólogos e assistentes sociais. Vale lembrar que o trabalho do psicólogo na educação deve ser voltado para o entendimento da rede de relações que permeia a educação e suas problemáticas, visando trazer alguma reflexão para as dificuldades apresentadas. A história daquele grupo de crianças não pode ser vista de modo pontual e desligada de uma série de outras histórias. Há de se trabalhar na rede educacional a idealização da história imaginada sobre como deveriam ser aquelas crianças, a história do desejo de cada educador ao exercer seu trabalho e a história de procurar novas respostas para antigas perguntas – por que vai mal a educação brasileira?


Publicado por: ANDIARA LOEFFLER GEZONI

O texto publicado foi encaminhado por um usuário do site por meio do canal colaborativo Meu Artigo. Brasil Escola não se responsabiliza pelo conteúdo do artigo publicado, que é de total responsabilidade do autor . Para acessar os textos produzidos pelo site, acesse: https://www.brasilescola.com.