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UPP: uma expressão de domínio territorial

Clique e entenda sobre a UPP e a sua relação com a expressão de domínio territorial.

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Resumo

Completando seis anos de vigência, as Unidades de Polícia Pacificadora – UPP são unidades de segurança policial instaladas em determinadas regiões periféricas do Rio de Janeiro com forte incentivo por parte do aparato de Estado e através do apoio dos holofotes midiáticos. Como salientam as lideranças de segurança pública do Rio de Janeiro, a proposta da UPP adota em primeira instância como estratégia de pacificação, a ocupação dos principais pontos territoriais acometidos pela alta incidência de traficantes sob a posse de armas de fogo, posteriormente, o desarmamento, cumprindo a tentativa de reduzir o índice de violência letal, um dos principais objetivos da Secretaria de Segurança Pública do estado do Rio de Janeiro.

O planejamento, a implementação e implantação dessas unidades militares de segurança pública têm colaborado com o crescimento de uma postura altamente autoritária por parte dos agentes policiais, que passam a exercer controle sobre o fluxo de vida dos moradores das regiões de favelas ocupadas por UPPs. A militarização das demandas sociais ganha sobreposição em face à necessidade de reforçar a ampliação da cidadania, a conquista de direitos sociais em âmbito democrático.

Palavras-chave: UPP, mercantilização da favela, domínio territorial, militarização do social.

Abstract

Completing six years of operation, the Pacifying Police Units - UPP are police security units in certain peripheral regions of Rio de Janeiro with a strong incentive on the part of the state apparatus and through the support of the media spotlight. How emphasize public safety leaders of Rio de Janeiro, the proposed pacification of UPP adopts at first instance and pacification strategy, the occupation of the main territorial points affected by the high incidence of traffickers under the ownership of firearms, subsequently, the disarmament, fulfilling the attempt to reduce the lethal violence index, a key objective of the Public Security Bureau of the State of Rio de Janeiro.

The planning, implementation and deployment of these public safety overt units have collaborated with the growth of a highly authoritarian attitude on the part of police officers, who come to exercise control over the flow of life of residents of slum areas occupied by UPPs. The militarization of social demands wins overlap in view of the need to strengthen the expansion of citizenship, the achievement of social rights in a democratic context.

Key – word: UPP, commodification of slum, territorial control, militarization of social. 

1. O processo de implantação das UPPs.

A UPP é oriunda de um processo histórico marcado por inúmeras experiências de tentativas de instalação de unidades de polícia especializada em favelas cariocas. De acordo com a Secretaria de Segurança do RJ, a UPP resulta de combinações com experiências anteriores de ocupações policiais, como o Centro de Polícia Comunitária (CPC).

O processo de pacificação consiste na ocupação de cerca de 200 favelas da Região Metropolitana do Rio de Janeiro, atingindo mais de 500 mil pessoas (MISSE, 2014). Somam-se aproximadamente 40 UPPs espalhadas pelas favelas cariocas, sendo a favela de Santa Marta a pioneira deste procedimento político e midiático, com origem em Dezembro de 2008, sendo sucedida pela favela do Batan e Cidade de Deus.

O Laboratório de análise de Violência (LAV), da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) afere a definição dos espaços de ocupação das UPPs aos megaeventos esportivos internacionais, como a Copa do mundo de 2014 e as Olimpíadas de 2016. Esta constatação contraria a justificativa do Instituto de Segurança Pública - ISP, que aponta a necessidade de instalar as UPPs em localidades cujo índice de criminalidade é elevado, sendo que, de acordo com Cano (2012), as UPPs estão implantadas principalmente nos bairros de Zona Sul, Norte e Centro e, na Zona Oeste as primeiras UPPs só teriam surgido por questões conjunturais.

A tese apontada pelo LAV denuncia claramente a funcionalidade das UPPs em torno das áreas de potenciais turísticos, desencadeando todo um aparato estratégico de segurança pública no entorno dos espaços definidos como áreas de realizações dos megaeventos. Há ainda uma terceira explicação para justificar a escolha desses territórios, sustentada pelos holofotes midiáticos e, de acordo com Misse (2014), por um comandante da UPP: a presença de facções criminosas e a sua influência para toda a região metropolitana do Rio de Janeiro.

As três primeiras comunidades (Santa Marta, Batan e Cidade de Deus), inicialmente tiveram a entrada do Batalhão de Operações Policiais Especiais (BOPE), da Polícia Civil e, em seguida, do policiamento realizado pelos batalhões das áreas pertencentes, havendo transição para uma área de policiamento comunitário, até gerar uma nomenclatura para essa nova forma de policiamento, que mais tarde seria denominada UPP (MISSE, 2014). 

A diferenciação entre as corporações policiais de batalhões e a UPP se deu por meio de decretos legislativos nº 41.650, nº 41.653 e nº 42.787. O nº 41.650,de 22 de janeiro de 2009, determina em Art. 1º, que

Fica criada, na estrutura da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro (PMERJ), subordinada ao Comando do Estado Maior, a Unidade de Polícia Pacificadora – UPP, para a execução de ações especiais concernentes à pacificação e manutenção da ordem pública nas comunidades carentes.

O nº 41.653, de 22 de janeiro de 2009, determina que

Os policiais militares lotados nas Unidades de Polícia Pacificadora, no efetivo exercício de suas funções, perceberão gratificação de encargos especiais no valor de R$ 500,00 (quinhentos reais); Parágrafo Único: a gratificação ora instituída será concedida tão somente aos que estiverem lotados nas Unidades de Polícia Pacificadora, e não se incorporará, para quaisquer efeitos, aos vencimentos do servidor.

E o Decreto de Lei nº 42.787, de 6 de janeiro de 2011, “dispõe sobre a implantação, estrutura, atuação e funcionamento das Unidades de Polícia Pacificadora (UPP) no estado do Rio de Janeiro e dá outras providências”.

Os agentes policiais lotados nas UPPs são subordinados as coordenadorias de Polícia Pacificadora (CPP), presentes em seus respectivos locais de atuação e as unidades são classificadas como Classe A e Classe B, de acordo com o número de policiais que as integram. As UPPs que apresentam em seu conjunto mais de 400 agentes são classificadas como Classe A e, as com menos de 400 agentes são classificadas como Classe B.

A capacitação dos militares em Direitos Humanos e na prática policial comunitária e a estruturação dos Conselhos de Avaliação Permanente de UPPs (envolto pelo secretario de estado de Segurança, secretario de estado Chefe da Casa Civil, subsecretário de Planejamento e Integração Operacional da Secretaria de Estado de Segurança, diretor presidente do ISP, coordenador da CPP e pelo comandante geral da PMERJ) também são etapas que fazem parte da composição da implantação das UPPs.

O regime de bonificação para os policiais é baseado no critério de meritocracia, um dos mecanismos de diferenciação em relação aos demais conjuntos policiais não atuantes em UPPs. Dessa forma a Unidade de Polícia Pacificadora surge para diferenciar policiais na corporação para fins de gratificação, reafirmando, em sua denominação, a ideia propalada pelos meios de comunicação de que haveria uma guerra no Rio, dependente de forças pacificadoras para a sua resolução (RJTV,18/12/2008).

A intervenção militar nesses conjuntos territoriais sustenta a tese de restaurar o cenário pacífico nas localidades tensionadas pelo tráfico de entorpecentes, enaltecendo a tarefa de praticar o desarmamento como principal iniciativa capaz de resgatar o território para o Estado. O resquício mais conservador a ser observado em meio aos trâmites de construção das UPPs, alimentado pelos aparatos do Estado e pelas redes midiáticas é de que os conflitos e atrocidades ocorridas nas favelas devem-se exclusivamente ao tráfico de drogas, elegendo-o como o único inimigo a ser destruído.

O Estado, como o braço armado das fatias burguesas (MONTAÑO, 2012), na ânsia de angariar o domínio exclusivo sob o monopólio da força tende a criminalizar as camadas mais baixas em detrimento do reconhecimento primordial de suas demandas, uma vez que a operacionalização de critérios presentes no plano meramente repressivo e coercitivo acaba por provocar condutas abusivas e corruptas no seio dos próprios mecanismos estatais que deveriam colaborar com a promoção do bem- estar da população residente nas favelas.

Há que se frisar a existência das milícias, linhas auxiliares de fomento ao crescimento desordenado da criminalidade nas favelas do Rio de Janeiro, geralmente são compostas por policiais, ex – policiais e militares do corpo de bombeiros e acabam por minar a confiança da população nas corporações policiais e nas autoridades públicas de um modo geral.

Em sua fase inicial, a milícia se vale da justificativa de que mantinha o território sob seu domínio, imune ao jugo das gangues de traficantes; posteriormente abandona sua pretensão de legitimidade em favor de uma ação mais ostensiva e truculenta, que mantém suas populações sob permanente ameaça e sentimento de medo (Cano, 2009).

O sentimento de medo no interior das favelas, bem como a concepção popular negativa acerca desses espaços, são potencializados pelos meios de comunicação, propulsores da disseminação de informações carregadas de conotações tendenciosas. Juntamente com as instâncias de segurança pública do Rio de Janeiro, os componentes midiáticos, uma vez grandes desencadeadores e apoiadores dos projetos de UPPs, inflamam as possibilidades de construção de alternativas emancipatórias para a população residente nas favelas cariocas, relegando todas as formas de poder de decisão e intervenção aos militares.

O conjunto de efetivo militar, uma vez favorecido por “receber” posto de autoridade máxima dentro de um espaço territorial, é reconhecido como instrumento desencadeador de proteção e favorecimento aos planos mercantis, sendo interpretado como âncora de segurança para quem se habilita a promover empreendimentos na periferia.

2. As UPPs e o favorecimento à mercantilização

Uma das justificativas já posta em menção acerca da implantação das UPPs em regiões estratégicas, fundamentada na tese da existência de facções criminosas, colabora para fornecer fôlego aos empreendimentos de pequeno, médio e grande porte ao redor das favelas ocupadas. Conforme já supracitado, os megaeventos esportivos evidenciam claramente o caráter estratégico da definição dos locais de instalação das UPPs, aditivo que acarreta degradações no contexto socioeconômico da população de baixa renda por resultar no encarecimento de bens de consumo e de serviços.

Conforme salienta Almendra (2014), grandes empresas criam produtos específicos para o segmento, de refrigerante a seguros. O banco Santander, por sua vez, decidiu potencializar seus lucros com o microcrédito para as classes mais baixas. Instalou a primeira agência bancária do Complexo do Alemão, antes mesmo da pacificação.

Enquanto a presença do Estado só apresenta solidez pelo seu caráter coercitivo, o mercado avança sobre o território de modo a criar ferramentas para atingir seu apogeu em diferentes modalidades de serviços, tingindo a favela como cenário de mercantilização. “A imposição de uma ordem coercitiva e mercantil em substituição ao domínio do tráfico é denunciada como uma escolha trágica que não abre espaço para a construção da democracia” (FLEURY, 2012, p.215). Seguindo ainda o direcionamento conduzido pela autoria em menção,

Grande parte dos esforços desenvolvidos por atores fora da polícia estão voltados para a formalização do mercado, embora envolvam também medidas coercitivas como a proibição de gatos de luz e TV a cabo, gerando muita insegurança e tensão. A ausência de controle do consumo de alguns desses serviços é denunciada pelos moradores como expressão da imposição de uma ordem arbitrária de mercado, como cobrança de taxas de iluminação pública onde o serviço inexiste (2012, p.214).

A entrada da polícia nos territórios lança de modo abrupto os moradores ao cumprimento de determinados deveres, o que não condiz com o cenário regressivo de conquistas de direitos de cidadania. São incumbidos de arcar com as taxas tarifárias oriundas de determinados serviços públicos, sem ao menos acessarem serviços básicos de esgoto e coleta efetiva de lixo.

Por parte de algumas autoridades públicas e de atores empresariais, a favela, dada a sua característica de lócus violento, é concebida como espaço incapaz de promover a expansão de investimentos atrativos, como no setor de serviços, turístico, imobiliário, etc., devendo ser objeto de medidas especiais de intervenção. Em concordância com a citação que segue, cabe salientar,

O esforço de transformação do Rio de Janeiro em uma “cidade de negócios” se dá na administração da relação de contraste e de desconfiança entre os modos de vida das classes médias e altas dos cariocas e dos favelados, os quais são alvos de “políticas de identificação” que criminalizam os seus lugares de moradia, imputando a eles uma subcultura de violência e de incivilidade e de ordem pública aceitos pelas elites (VITAL, 2012,p.15).

O encarecimento dos serviços, a pressão pela adesão da população aos critérios tributários exigidos legalmente, as modalidades de “modernização da favela”, a influência do setor imobiliário, elevação do custo dos aluguéis, além de exercer penalização diretamente sobre as camadas mais pobres acabam por envolver a população em processos migratórios, compondo o processo de “higienização social”, fortalecendo a disseminação da segregação socioespacial. Esta dinâmica não ocorre somente no interior das favelas, mas também nos arredores.

Em contraste às atividades econômicas do ramo informal, há fortes incentivos em direção ao empreendedorismo, em parceria com instituições do sistema S (Senac, Senai, Sesi) com vistas a promoção de capacitações profissionais. É uma alternativa vinculada ao objetivo de transformar as favelas em áreas estratégicas de negócios, em consonância com as expectativas da classe dominante.

Cabe reforçar que as UPPs concentram os esforços de manutenção do monopólio e do uso da força física, sendo um processo apoiado por grupos de elite com interesses econômicos nas classes populares, uma vez que, em paralelo à pacificação, promove-se a ampliação dos mercados populares e urbanos de consumo (ALMENDRA, 2014).

A ode ao consumo, ao luxo e à ostentação passa a fazer parte do imaginário de MCs de funk, que produzem músicas e videoclipes constando festas de luxo, iates e automóveis luxuosos, notas de dinheiro e joias, compondo o chamado Funk da Ostentação. Esses MCs são oriundos de favelas e o discurso que proferem em suas músicas corroboram para demonstrar o comportamento consumista das classes populares.

Com a intensificação da presença das UPPs imprime-se no território uma interlocução cada vez mais estreita entre as atividades policiais e o campo econômico, uma vez que as atividades econômicas que antes não eram atingidas passam a ser operacionalizadas por franjas empresariais, que enxergam na presença policial, o alicerce seguro para a expansão mercadológica.

A racionalidade mercadológica, o fomento ao consumismo, a busca pelo progresso econômico nas favelas relega “socialização dos problemas sociais” para um segundo plano, ficando em primeiro plano a “policialização dos problemas sociais”, já que as políticas sociais perdem espaço para as atividades comerciais. O caráter de vigilância da polícia militar em torno dos segmentos que fazem ou não parte da atividade de consumo, fortalece a tese de que a criminalidade é arma restritiva ao consumo. A postura policial gera no campo mercadológico interpretações que associam o fracasso do progresso econômico à incidência de criminalidade.

Assim, a policialização da sociedade e a militarização da polícia (MORAES, 2008), somadas aos ideais de construção de uma cidade próspera através das políticas de segurança de cunho economicista, revelam formas de individualismo que fazem com que os sentidos (e os sentimentos) da paz e do medo se neutralizem reciprocamente, silenciando a política, fazendo com que o carioca se esqueça que a liberdade individual só pode ser resultado da luta coletiva (BAUMAN, 1999).

3. UPP: autoritarismo como forma de domínio territorial

Conforme evidenciado, a ocupação das favelas por meio da presença ostensiva das UPPs corrobora para promover a justaposição entre domínio do território e atendimento das expectativas do setor de negócios, criminalizando em potencial qualquer atividade presente no campo da informalidade. A soberania policial nesses espaços funciona como pilar de sustentação para o crescimento da confiança dos investidores.

A formalização dos serviços, bem como a regulação das ações realizadas pelo conjunto de moradores das regiões de favela cooperam com a restrição de liberdade da população, compelida inclusive, a abandonar a organização de alguns eventos culturais que não prescindem de gastos financeiros, como por exemplo, o baile funk.  Sendo um evento alvo de constantes proibições por parte das forças policiais, o baile funk deve prescindir de pedido de autorização aos militares para que sua realização seja concretizada.

Outras manifestações festivas entre moradores do território, bem como o uso de equipamentos públicos (quadras esportivas e demais concessões de uso popular) também requerem pedidos de permissão ao aparato policial para a concretização, reforçando a conotação autoritária da unidade, influente em exercer seu domínio ao redor do território.

Em pesquisa encomendada pelo Jornal O Globo, ao Instituto Brasileiro de Pesquisa Social (IBPS), datada em 25 de janeiro de 2010, direcionou-se a seguinte pergunta ao conjunto de moradores das favelas ocupadas por UPPs: “na sua comunidade hoje quem comanda é...” Em resposta, 75% informaram ser a polícia/UPP, 11% informaram ser a associação de moradores, 1% informou ser o tráfico e, 11 % não souberam responder.

Quem comanda? Esta pergunta traz à baila o pressuposto técnico do programa das UPPs, bem como aquilo que a sociedade carioca espera dele. A pergunta aglutina numa síntese o modo de construção pública do problema da segurança e da violência, articula a agenda política à agenda midiática a partir de uma visão social do lugar ocupado pelas favelas e seus moradores na hierarquia social, política e moral da cidade. Na medida em que a pergunta pressupõe a necessidade de que os pobres sejam “comandados”, ela os estigmatiza (GOFFMAN, 1980).

O exercício da conduta excessivamente autoritária das UPPs nos espaços da periferia corrobora para que moradores percam a noção de território, uma vez que, para Santos (1994), o território em si não é um conceito, e sim, o seu uso. A noção de território se constroi a partir da relação entre o território e as pessoas que dele se utilizam. O autor explicita a necessidade de o território desenvolver papel ativo no processo de tomada de decisões.

Concordando integralmente com Koga (2003), a vida ativa no território é uma das formas de expressão da cidadania, onde as relações sociais, as relações de vizinhança, a solidariedade e as relações de poder se concretizam, onde o direito a ter direito é expresso ou negado. As reivindicações giram em torno do direito de morar, estudar, transitar, divertir-se, opinar, trabalhar e participar.

É no território que as desigualdades sociais mostram-se mais evidentes entre os cidadãos, uma vez que a qualidade dos serviços públicos prestados apresenta-se desigual.  Em uma sociedade onde a cidadania é fundamentada na base salarial, as classes subalternas estão mais suscetíveis à violência policial e aos disciplinamentos militares e, essas práticas repressivas somadas aos desvios ethos policial[1] ampliam as chances de ocorrência da perda da própria identidade do território.

É no cotidiano do território que são criadas e recriadas formas de vida, de convivência, alternativas de mudança, mas com a liberdade ameaçada pela presença ostensiva da UPP, as possibilidades de reforçar e cultivar as raízes históricas do território sofrem constantes ameaças. A preservação da memória de construção daquele lugar é obscurecida por estar camuflada ante aos avanços do controle militar.

Considerando os traços marcantes de truculência e autoritarismo deixados pelo período ditatorial, o caráter ostensivo das UPPs em detrimento do comunitário não deixa dúvidas de que se alicerça a modelos de conduta militar impostos pelo regime de exceção. A violência letal praticada pela polícia, os autos de resistência[2] e a presença de corpos desossados encontrados a determinadas distâncias da área da UPP enfraquecem o grau de confiança no registro de ocorrências policiais.

O conjunto de milícias adota o costume de praticar homicídios em regiões próximas aos postos de UPP, além disso, têm-se os constantes episódios de desaparecimentos nessas áreas, como por exemplo, em 2014 o caso Amarildo. Dado o sistema de metas proposto, baseado no critério de bonificação monetária para o conjunto de efetivo incumbido de cumprir com a redução do índice de homicídio, com as configurações ressaltadas, os registros que deveriam ser contabilizados em sua magnitude acabam por compor sub-registros.

O sub-registro de ocorrências sob a expectativa de realizar o cumprimento de metas compromete a transparência contra as ações de violência. O ISP apresenta uma série de registros incompletos, não constando inclusive, a ocorrência de homicídios praticados pelas forças policiais. A Revista Carta Capital (10/12/2014) relembra a morte do jovem Henry Siqueira, de 16 anos, no ano de 2002, no Morro do Gambá (Zona Norte do Rio de Janeiro). O caso foi registrado como auto de resistência e a polícia alegou encontrar armas e entorpecentes de posse do jovem, versão desmentida posteriormente pelo Tribunal de Justiça, resultando na condenação de um policial militar por nove anos de detenção.

O auto de resistência é uma prática bastante recorrente nas periferias cariocas, outro exemplo bem repercutido na mídia é a morte de uma servente de 38 anos de idade, baleada durante uma troca de tiros entre policiais e traficantes. Depois de baleada, a servente morreu a caminho do hospital, mas sua morte não foi ocasionada pelos disparos de arma de fogo e, sim, em virtude da imprudência dos policiais que a levavam em um camburão, vitimando-a ao arrastar o seu corpo por cerca de 250 metros após o porta - malas se abrir e suas roupas ficarem presas ao para-choque do automóvel.

Tramita na câmara um projeto de lei que tornam mais rigorosas as investigações de mortes provocadas por policiais, porém, é um procedimento ameaçado por outras propostas legislativas calcadas em fomentar ainda mais a criminalização da população de baixa renda, residente em região de periferia.

 O Programa de Emenda constitucional de número 171, que prevê a redução da maioridade penal exemplifica uma das propostas concentradas em tentar solucionar as problemáticas das classes mais pobres sob o ordenamento repressivo, sobretudo, atingindo jovens negros. Mas tal leque de argumentos não é foco de aprofundamento no presente trabalho, porém, vale citá-lo brevemente como forma de demonstrar a interpretação política que sem tem das classes subalternas, já que as visões disseminadas socialmente e midiaticamente repercutem no Congresso Nacional.

4. Conclusão

Percebe-se que o conceito de cidadania torna-se retórico em um contexto societário encarregado de valorizar faixa salarial, progresso econômico, consumismo em detrimento da expansão universalizada da democracia e da igualdade social. As favelas cariocas são equipadas com aparatos de segurança pública, mas não sustentando a finalidade de estabelecer proximidade comunitária com a população residente e, sim, sob o jugo do poder, da dominação, da imposição sistemática de regras.

O autoritarismo policial exacerbado é reafirmado como condição final para o estabelecimento da “ordem” nas periferias, por parte dos aparatos públicos e por parte da mídia, lançando um equacionamento entre a presença ostensiva dos policiais e a abertura para o desencadeamento de atividades comerciais na favela. É um critério crucial para lançar a funcionalidade dos aparelhos repressivos em favor da classe dominante, em reforço a constatação de que, de fato, o Estado é o comitê executivo incumbido de gerir os negócios da burguesia (MARX, 1998).

As fatias mais pobres recebem todo o ônus do processo de “modernização” imposto na periferia, sofrendo constantes criminalizações e encontrando percalços que dificultam o alcance da cidadania, assim o Estado se mostra nesses espaços apenas em sua face mais repressiva e violenta, deslegitimando a importância da implementação de políticas públicas essenciais.

A profissão de policial não deve passar pelo crivo da desqualificação, da desvalorização e não deve ter a sua importância descartada, no entanto, é primordial que condutas abusivas por parte do efetivo sejam investigadas com alto teor de rigor, de modo a erradicar a violência crescente contra as camadas sociais mais pobres. O trabalho da polícia perde credibilidade frente à população por conta da presença de efetivos caracterizados por ferirem preceitos éticos e violarem direitos humanos.

Existem outras frentes de representação e administração no seio da favela que precisam revigorar forças e adentrar no espaço com as ações que revertam o prisma do autoritarismo policial. A associação de moradores, profissionais lotados em prefeituras, funcionários de ONGS têm a missão de ressignificar esses espaços, com empenho no resgate da cidadania da população. A sociedade civil e os movimentos sociais organizados não estão eximidos dessa proposta, também precisam evocar alternativas em prol do protagonismo social dos moradores das favelas ocupadas por UPPs.

Postas em articulação, as frentes mencionadas movimentam as bases para atacar o núcleo duro do autoritarismo emitido pelas UPPs, o que só pode ser viabilizado com mobilizações e resistências. Há recentes quadros de resistência face ao autoritarismo e violência policial, principalmente por parte de pais que reivindicam justiça frente às atrocidades policiais praticadas contra seus filhos, como exemplo, tem-se a mobilização social no Complexo do Alemão em favor da punição severa de policiais militares envolvidos na morte de Eduardo, uma criança de 10 anos de idade, atingida por um disparo de fuzil.

Detalhar as experiências de resistência e mobilização social contra a violência policial e contra a instalação e/ou permanência das UPPs em regiões de favela prescinde da identificação sistemática dos principais atores envolvidos nesses regimes de manifestação social, principalmente em se tratando da presença de movimentos sociais. O estudo dos movimentos sociais atuantes nessas ações pode compor um projeto de mestrado e mais adiante, clarear possíveis caminhos para indicar de modo ainda mais plausível alternativas para alterar a realidade que hoje assola os moradores cariocas das regiões ocupadas por UPPs.

Referências

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BAUMAN, Zygmunt. Globalização: as consequências humanas. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1999.

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KOGA, Dirce. Medidas de cidades: entre territórios de vida e territórios vividos. Cortez Editora, 2003.

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VITAL, C. A cidade para os civilizados: significados da ordem pública em contextos de violência urbana. Dilemas, Rio de Janeiro: UFRJ, v. 5, n. 231, p.211 – 232, abr./jun. 2012.


* Carolyne Santos Lemos - Assistente Social, formada na Universidade Federal do Espírito Santo – UFES.

[1] Conforme Daniel Misse (2014) alguns estudiosos apontam para a existência de uma conduta ética por parte dos policiais. O modo de se vestir, pronunciar-se, interpretar o mundo, entre os membros da polícia pode se constituir no ethos policial ou cultura policial. Ao discorrer sobre os desvios desse ethos põe-se em evidência a violação de determinadas condutas consideradas adequadas.

[2] De acordo com a Revista Carta Capital (10/12/2014), o auto de resistência é uma conduta praticada por policiais implicada no ato de esconder a veracidade de fatos criminosos. O homicídio praticado pelos militares é justificado pela conduta supostamente resistente e criminosa da vítima.


Publicado por: Carolyne Santos Lemos

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